sábado, 14 de janeiro de 2012

UM CAFÉ E UM CIGARRO


"Há coisas que no imaginário constituem a história de uma vida, perdê-las pode exigir (re)significar a própria vida."
Data: aproximadamente nove horas da manhã do dia 19 de abril de 2011.
Local: café da Galeria Chami, no calçadão de Santa Maria, Rio Grande do Sul.

Seria uma manhã absolutamente normal se não fosse pela cena comovente que vi se repetir dur......ante os dez minutos em que eu bicava um café expresso: um a um, os senhores que ali estavam – como eu, tomando café – dirigiam-se imediatamente para o calçadão para acender seus cigarros. Ao constatar a ausência dos tradicionais cinzeiros no balcão, não me contive e perguntei se o fumo estava proibido por ali. Vocês já sabem qual foi a resposta que obtive.

É justo que eu inicie este novo espaço comentando precisamente esse tema, pois a idéia de um espaço para “entretenimento existencialista” surgiu precisamente em discussões sobre a proibição do fumo em espaços públicos. Discussões das quais saí com o mesmo sentimento que, penso, deve ser um dos mais fundamentais da existência humana: a melancolia de perceber a impiedosa passagem do tempo, que não deixa nada incólume, que não perdoa nem indivíduos nem costumes. É com essa melancolia que sou forçado a admitir: o tempo do cigarro está acabando.

Sei que defender um hábito como o tabagismo é trair a idéia do que seja politicamente correto. Contudo, é mais fácil trair uma idéia vazia do que trair as vívidas memórias de meus primeiros anos de vida, onde assistia meus pais e minha avó materna jogando cartas na mesa da sala de estar, fumegando seus Ritz e Palace durante as noites de minha infância. Ou a lembrança das latinhas de creme Nívea de minha tia, cheia de filtros vermelhos de Hollywood. Ou mesmo a lembrança da primeira tragada – e a subseqüente tontura – na aurora dos meus dezoito anos (sim, dezoito!), de um cigarro mentolado oferecido por um amigo durante uma festa.

Como este é um espaço existencialista, não preciso nem dizer que os episódios descritos no parágrafo acima não poderiam servir como justificativas para a adoção do hábito: um vício conhecido e reconhecido como tal já não é – ou não deveria ser – exatamente um vício. Evoco essas imagens apenas para, sob a proteção de diversos pensadores, tornar mais nítidos os contornos de uma outra idéia: a de que os vícios são, ao lado das virtudes, tão constitutivos de nossas individualidades quanto as virtudes.

O café que tomei há cerca de uma hora foi, sim, o mais melancólico que já tomei. Qualquer fumante sabe o quanto um café pede, exige, implora por um cigarro. Qualquer fumante sabe o quanto a experiência de fazer uma pausa para beber um café fica incompleta sem o cigarro. Sei que me refiro aqui a uma experiência simbólica, que me refiro a camadas de sentido que podem, com algum esforço, desaparecer completamente da experiência. Um esforço que eu chamaria, contudo, de empobrecimento da experiência. Pois reduzir o cigarro e o café àquilo que eles são em si mesmos e destituí-los do lugar privilegiado que ocupam no dia-a-dia de um “viciado” é simplesmente arruinar um “esconderijo” do devir cotidiano. E é uma destruição operada através de uma “lucidez fenomenológica” cujas forças ninguém teria a crueldade de lançar sobre outras dimensões da vida: quem consegue imaginar, por exemplo, o que sobraria da religiosidade e/ou da sexualidade se estas fossem despidas de seus aspectos “mágicos”?

(Talvez uma análise um pouco mais precisa e demorada revelaria um empobrecimento da experiência também nestas dimensões da vida, e essa seja uma das razões da miséria existencial de nossos dias. Mas esse seria assunto para um próximo texto.)

É claro que é possível existir no deserto de lucidez de uma experiência empobrecida – isto é, encarar a religiosidade como apanágio imaginário, a sexualidade como mero impulso fisiológico, o tabaco como uma erva que queima e faz mal, etc. Talvez não exatamente viver, mas sobreviver. E a lucidez é evidentemente uma virtude necessária, até mesmo para que os indivíduos não sucumbam à tentação do anacronismo (tentação da qual não sei por quanto tempo conseguirei estar à salvo, uma vez que já me embaraça aos 25 anos) ou de outras neuroses nas quais seja possível fazer trincheira e sobreviver. Contudo, confesso: não realizo essas reduções fenomenológicas até que as julgue necessárias. Assim, é sem embaraço que me permito um pequeno delírio: o delírio de dizer que sei que a ironia é uma lei do acaso, e que eventualmente o cigarro, que tanto defendo, pode me tirar um pulmão, alguns dentes, alguns entes queridos ou, em última instância, minha própria vida. Mas que, no fundo, a perda dos dentes, do fôlego ou dos entes queridos são expressões de nossa finitude essencial. Finitude com a qual temos que aprender a conviver, com ou sem melancolia.

Sic "Café e Melancolia"

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